Linguagem e Meritocracia

12 de September de 2019

LinguagemLudwig Von Wittgenstein, filósofo austríaco nascido em 1889 foi um grande pensador da filosofia da mente, da linguagem e da lógica. Suas ideias ocorrem em dois momentos distintos de sua vida, e por isso, diversos autores o denominam de Primeiro Wittgenstein e Segundo Wittgenstein.

O Primeiro buscou descobrir como os humanos transmitem ideias entre si, afirmando que as palavras ditas nos fazem criar imagens sobre o que foi falado, elas ilustram os fatos em nossas mentes.

Já o Segundo Wittgenstein considera as palavras como instrumentos para participar de Jogos de Linguagem. Esses jogos são entendidos aqui como as ações em que a linguagem se manifesta, num dado contexto, compatível com a forma de vida de quem está se expressando, revelando seus padrões de intenções por trás daquela linguagem.

ExemploQuando vou visitar um parente terminal no hospital e entre as lágrimas nos abraçamos e eu digo que vai ficar tudo bem, não estou dizendo literalmente que ele será curado dessa doença. O Jogo de Linguagem que estou envolvido não é “Previsões Racionais com Base nos Fatos Disponíveis”, o meu padrão de intenção é outro. Estou no jogo “Palavras Como Instrumento de Conforto e Segurança”. O que estou transmitindo não é que ele será curado e ficará tudo bem, mas que apesar disso, estamos todos ali dando o apoio necessário.

Além disso, nosso entendimento sobre nós mesmos depende também da linguagem que outras pessoas criaram, mas que nós fomos capazes de compreender e incorporar. Um exemplo é a palavra ‘Saudade’, que para nós, de língua portuguesa, remete a sentimentos que entendemos mesmo sem uma definição explícita, mas que temos dificuldade em explicar para pessoas que não falam português.

Considerando as ideias do Primeiro e do Segundo Wittgenstein, em relação aos desentendimentos na comunicação, eles podem ocorrer a) pela dificuldade de criarmos imagens claras do que queremos expressar e transmitir aos outros; b) se não formos capazes de entender o ‘jogo’ no qual alguém está mergulhado.

Afinal, o que tem a ver a Linguagem com a Meritocracia?A palavra Meritocracia é uma composição de Mérito (em latim ‘mereo’ = ser digno, merecer) e Cracia (do grego ‘krátos’ = força, poder). Assim, a palavra Meritocracia liga o Mérito ao Poder (fonte Wikipedia). Por sua vez, esta ligação tem entendimentos contraditórios.

Por um lado, entende-se que o termo se traduz por Justiça, em que a promoção e a valorização das pessoas se baseia nos seus méritos (como esforço, inteligência, aptidão, entre outros). Por outro lado, a meritocracia é considerada como um instrumento ideológico em que as desigualdades sociais são mantidas e perpetuadas, pois no modelo meritocrático a atribuição de mérito desconsidera fatores como o ponto de partida, as oportunidades na vida, as condições socioeconômicas das pessoas, nivelando o que não poderia ser nivelado.

Um estudo de 2016, da Universidade de Ottawa, no Canadá[1] que analisou a desigualdade e a mobilidade social intergeracional em mais de 20 países, demonstra que no Brasil uma pessoa que nasceu pobre pode levar em média 9 gerações para atingir a classe média. Apenas 7% dos mais pobres consegue se mover para as classes mais ricas, e 35% do total de pessoas pobres não conseguem se mover para qualquer nível acima. Por outro lado, apenas 7% dos filhos de famílias ricas tendem a descer na escala de riqueza, enquanto 45% deles se mantém na mesma posição entre os mais ricos.

Isto posto, vamos ver na prática o que tem a ver a Linguagem com a Meritocracia. Para isso, apresentamos a seguinte história.

Conheça Mario e JulianaMas não foi fácil. Mário não obteve aprovação no primeiro vestibular que prestou. Demorou mais duas tentativas até que finalmente conseguisse sua vaga em Medicina numa Universidade Federal, mas em outra cidade.

Mário Santos terminou o ensino médio antes de completar 18 anos. Como decidiu ser médico, sabia que não iria entrar logo de cara. Prestou o primeiro vestibular como forma de adquirir experiência, mas já se inscreveu num curso preparatório para garantir o futuro. Nos anos seguintes o desafio foi grande. Estudou praticamente 8 horas por dia, sem contar as aulas do cursinho. E como aluno dedicado, nunca faltou a uma aula.

Mário passou os 6 anos morando longe da família e estudando 14 horas por dia. Se formou Médico e fez o cursinho para conquistar uma vaga na residência, ele vai ser Neurologista.

Corta a cenaQuando Mário Santos descreve sua própria trajetória, explicando que a renda de mais de 100 mil reais por mês é merecida, ele não tem como deixar de lembrar dos colegas de cursinho que preferiam sair para beber ao invés de assistir aulas, dos que riam da quantidade de horas que se dedicou aos estudos e dos plantões de 36 horas que fazia sem remuneração durante o internato.

Em sua avaliação pessoal, ele possui mérito pelos seus ganhos. Esforçou-se mais do que seus pares e hoje consegue desfrutar de uma vida de bastante conforto.

Mas aqui entra outro personagemJuliana Silva subiu a ladeira da rua Comendador Antunes dos Santos todos os dias durante quase 10 anos. Perto da terceira série do ensino fundamental, teve a sorte de conseguir uma vaga numa boa escola pública, pelo menos melhor do que sua escola antiga. Nossa personagem fez até o terceiro ano do Ensino Médio na Escola Estadual Deputado João Sussumu Hirata, mas sua mãe não deixou que pensasse no vestibular.

A mãe de Juliana trabalhava como diarista e, desde cedo, a filha saía da escola e ia direto ajudar em casa, fazendo os serviços domésticos que a mãe não conseguia por estar trabalhando. Juliana cuidava dos 2 irmãos mais novos, lavava roupa, arrumava a casa e fazia comida. Ela nunca conheceu o pai.

Agora com a filha completando o ensino médio, o caminho que sua mãe traçou para ela foi o mesmo que escolheu anos antes. Ia dividir os clientes novos com a filha e ela ajudaria nas despesas de casa.

Demorou quase 3 anos, agora com 21, para que Juliana conseguisse convencer a mãe de que queria estudar para melhorar de vida. Sua mãe, desconfiada, jogou todo peso nas costas da filha. “Você tem que ajudar nas contas de casa. Se quiser estudar à noite é problema seu, mas não pode parar o serviço”.

Estudando à noite, Juliana seguiu revisando a matéria por conta própria, aproveitando as 2 horas que sobravam do seu intenso dia de trabalho. Levou quase dois anos para que ela pudesse entrar numa universidade pública. Sua nota não era muito alta, mas conseguiu entrar no curso de Pedagogia, escolhido estrategicamente pela baixa concorrência.

Juliana não conseguiu se formar no tempo regulamentar. Pelo trabalho puxado, não conseguia acompanhar as aulas direito. Tinha dificuldade de fazer os trabalhos extraclasse e entender a matéria. Não era raro ver Juliana pescando na aula enquanto o professor explicava o conteúdo.
Depois de quase 7 anos, Juliana finalmente conseguiu seu diploma, abandonou as faxinas e começou a trabalhar como pedagoga numa pequena Escola Infantil.

O que você quer dizer quando fala sobre Meritocracia?Agora que você já entendeu como Wittgenstein aborda a comunicação e conheceu duas realidades completamente opostas, podemos começar a esboçar o ponto central deste texto:

Qual jogo de linguagem você está jogando quando fala sobre meritocracia?

Essa é uma questão fundamental para que a discussão saia do superficial e crie uma ponte entre as duas opiniões. Então, vamos tentar unificar este jogo.

Mario e Juliana entram num bar

Num cenário hipotético onde a distância socioeconômica entre Mário e Juliana permitiu que se conhecessem e frequentassem o mesmo bar, a conversa introdutória entre os dois começaria mais ou menos assim.

Mário tentaria impressionar a moça com sua história. Iniciaria a conversa contando sobre sua infância e quantas horas estudava por dia para conseguir passar em medicina. Contou como foi difícil morar sozinho e longe dos pais, as dificuldades que passou para ser aprovado nas matérias e o cansaço de cada dia de internato.

Contou também como a prova para residência é ainda pior que o vestibular e que alunos pagam às vezes 20 mil reais em cursinho para poder passar na prova. No final, Mário fecharia sua história assumindo os louros da vitória. “Foi difícil, mas com dedicação e mérito, hoje eu tenho uma vida muito boa”.

Juliana escutaria tudo calada, sorrindo por fora mas intrigada por dentro. Algumas perguntas surgiriam durante a conversa, mas ela queria ouvir todo o contexto.

Aos olhos dela, como alguém que não precisava trabalhar em casa durante a infância, estudou desde cedo nas melhores escolas e pôde dedicar 3 anos exclusivamente para estudar, pagando um cursinho específico, está se achando especial?

Morou em outra cidade sem precisar trabalhar, apenas estudar. Tinha apartamento pronto, aluguel pago e comida no prato. Podia se dedicar aos estudos e, antes mesmo de se formar, pagou uma fortuna num cursinho de residência. Não existe mérito nisso. Ele simplesmente teve acesso e fez a única coisa que precisava fazer.

Juliana foi embora achando Mário arrogante, e ele não entendeu porque a moça não se interessou por sua bela jornada de sucesso.

O domínioDepende do domínio. Um domínio pode ser interpretado como o campo de aplicação de uma ideia, com um determinado jogo de linguagem. É o contexto específico onde uma afirmação pode fazer sentido.

Quando Mário diz para Juliana que hoje ganha muito bem por efeito da meritocracia, ele está se comparando aos seus pares e reconhecendo que fez escolhas que as pessoas na mesma posição não fizeram. Seu jogo de linguagem aqui seria algo como: Conclusões baseadas em comparações imediatas. Ele se compara com as pessoas que estavam no mesmo meio, assumindo que sua diferença para eles foram suas ações.

Para quem se expressa dentro deste jogo, tudo o que vale são as experiências diretas que absorveram do mundo, as pessoas que conhece e as referências imediatas.

No entanto, quando Juliana escuta o que Mário está dizendo, ela está participando de um outro jogo de linguagem. Ela conhece um mundo muito diferente e estudou bastante as estatísticas de pobreza e mobilidade social. Ela entende que para quem nasce pobre, a grande maioria das vezes você pode fazer tudo certo que não vai mudar o resultado. Crianças pobres que fazem tudo certo ainda se saem pior na vida do que crianças ricas que fizeram tudo errado.

Podemos dizer que o jogo que Juliana está engajada se chama: Conclusões baseadas em fatos e estatísticas.

Como cada um dos nossos personagens está aplicando a palavra mérito e o conceito de meritocracia em dois domínios distintos, é muito difícil explicar para Mário por que Juliana não acredita em mérito e, nem Juliana entender que existe qualquer mérito na história de vida de Mário.

​Créditos: Este texto foi baseado e inspirado na matéria publicada por Startupdareal: https://medium.com/startup-da-real/tudo-que-voc%C3%AA-precisa-pensar-antes-de-falar-sobre-meritocracia-4c378f961847

[1] Inequality from generation to generantion the United States in Comparison. Miles Corak. Graduate School of Public and International Affairs University of Ottawa Canada. http://nws-sa.com/rr/Inequality/inequality-from-generation-to-generation-the-united-states-in-comparison-v3.pdf

gabriel

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