Tenho refletido e me desafiado a trazer mais clareza para uma questão que nesses tempos de pandemia está emergindo. Minhas reflexões têm base nos meus campos de saber, estudo e prática, que são a psicologia, a mediação de conflitos e a Comunicação Não-Violenta, a CNV.
O tema, de onde ouço, é: “Será que uma pessoa tem um valor ou uma necessidade que é exclusivamente sua, isto é, um valor ou uma necessidade individual, sem relação com o todo, com o coletivo? ”
Será que podemos dizer que o valor de liberdade, autonomia e potencial de escolha de uma pessoa pode ser expresso sem afetar o outro, ou os outros?
Trago essa reflexão para um concreto atual.
Há um mês atrás, no início da crise do coronavírus, encontrei um vizinho no supermercado, eu o conheço, ele mora com sua esposa no mesmo andar do prédio em que resido. Ele estava com 3 carrinhos de compras bem cheios, um deles só de papel higiênico. Fiquei curiosa e chequei com ele se ele estava fazendo compras para outras famílias, ele me disse que era só para ele e esposa. Me disse que estava muito preocupado e queria garantir o seu bem-estar nesse período. Confesso que fiquei um tanto indignada, emiti na minha mente, alguns julgamentos condenando-o ao lugar de egoísta e tal. Depois de um tempinho, naquele segundo olhar para a situação, repensei e busquei compreender ampla e empaticamente o meu vizinho. Sim, talvez ele seja um marido cuidadoso, talvez ele se sinta responsável pelo bem-estar do casal, talvez suas necessidades de previsibilidade, segurança, proteção e potência estavam tentando ser atendidas naquele gesto de fazer uma compra gigante. E pode ser que ele estivesse convivendo com sentimentos de muita insegurança, medo, impotência e até um certo desamparo simbólico com o caos anunciado. Essa maneira de lidar com esse encontro com o vizinho, acalentou meu coração. Agora, eu estava me relacionando com um ser humano, com sentimentos e necessidades vivos e pulsantes. Eu havia conseguido empatizar com ele.
Só que, nem sempre nossas ações para atendermos nossas necessidades cuidam do todo, nem sempre elas são éticas. E podemos estar diante dessa questão nesse exemplo.
Onde ficaria o fato de que outras pessoas que também precisam de papel higiênico, por exemplo? Será que elas foram vistas na atitude do vizinho? Como podemos, então, atender nossas necessidades de cuidado, inclusão, mutualidade e senso de pertencimento comunitário e continuar atendendo as de bem-estar, segurança, proteção?
A questão, para mim, tem um tom filosófico e ético e seria, qual a relação entre o “eu” e o “nós”? Se não pudermos colocar o “eu” na relação com o “nós”, o que estaremos produzindo em nossas vidas em comunidade? E será que existe a minha liberdade, ou talvez seria mais útil pensarmos em nossa liberdade?
Parece-me que ao longo do desenvolvimento da humanidade, saímos de uma condição de identidade fundida na coletividade, em que o indivíduo era ligado ao sobrenome da família, ou era identificado pela cidade em que habitava e passamos para um projeto de individualismo e liberalismo em que o indivíduo se apartou do coletivo. Nossa consciência de interconectividade foi esquecida. Acreditamos na liberdade e na autonomia individual e não a relacionamos com o todo. Nesta perspectiva, o “eu” e o mundo, os outros, o coletivo estão sem relação. Talvez estejamos vivendo a falta do senso de relação.
Como seria:
Relacionar o que é importante para mim com o que é importante para a comunidade em que vivo?
Relacionar minha liberdade e autonomia com o cuidado, a proteção e segurança coletiva?
Relacionar a maneira como me expresso verbalmente com como isso cuida do outro e dos outros?
Relacionar meu desejo de obter bem-estar e abastecer minha casa numa época de crise, com o reconhecimento de que todos precisam abastecer suas casas.
Relacionar que quando me omito diante das injustiças sociais porque não quero me indispor com meus grupos de pertencimento, talvez eu esteja coconstruindo uma realidade injusta e violenta para muitos e, portanto, para mim mesma.
Relacionar que o café que tomo de manhã, só chegou em minha casa porque outras pessoas plantaram, colheram, processaram, embalaram, transportaram e me venderam.
Relacionar que o “eu” só existe na dimensão do “nós”.
Assim, de onde entendo, os valores e as necessidades humanas são termos que carregam em si a semente do coletivo. São maneiras de olharmos para o que cuida e legitima a vida que pulsa em todos nós e que insiste lindamente em se expressar, buscando honrar a todos nós com o senso da dignidade humana.
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